domingo, 18 de maio de 2014

A última caminhada de Joseph Finder, de Girotto Brito

      Nosso convidado de hoje é o escritor Girotto Brito, autor do blogue O Poeta e a Madrugada. Ele é graduado em Matemática e Física e faz mestrado em Engenharia Elétrica. Natural de Marília SP, mora em Bragança no Pará, cidade que ele diz ser irreverente. Apesar de ser formado e cursar ciências exatas, é um amante da literatura.


A última caminhada de Joseph Finder

      Joseph Finder nasceu num pequeno vilarejo ao norte de Virgínea, onde as pessoas são simples, a comida é boa e todos contam vantagens da excelente hospitalidade daquele lugar. Nunca conheceu sua mãe, e seu pai morrera quando ele ainda era uma criança. Foi criado por sua avó paterna, Amélia Finder, que lhe ensinou tudo que precisava para poder desenvolver-se sozinho na juventude. Apesar dos mimos que sempre teve durante sua infância, Joseph nunca tinha jogado futebol, nem nadado, ou sequer praticado algum outro tipo de atividade que exigisse esforço físico demasiado, tudo isso porque ele havia nascido com uma rara doença cardíaca que poderia matá-lo a qualquer momento. Não foi fácil para ele viver uma infância onde não podia aproveitar os prazeres dessa maravilhosa fase. Em compensação, Joseph se tornou um excelente enxadrista, escritor e músico. Atividades que não lhe exigiam esforço físico algum. Seus livros passaram a ser vendidos em todo o país e em alguns anos ele passou a ser dono de uma pequena fortuna. Mudou-se então para Fender, uma grande metrópole, e abriu sua própria editora. 
       Apesar do sucesso profissional, nunca teve êxito na vida amorosa. Sempre que conhecia alguém e se apaixonava, o namoro acabava sendo um desastre, simplesmente porque Joseph sempre passava mal quando tentava manter relações com suas parceiras. Seu coração era uma chave que fechava as portas de todas as possibilidades amorosas. Depois de um tempo, desestimulado pelos sucessivos fracassos, ele parou de tentar.
       As coisas estavam bem, até o diagnóstico que seu médico deu há três meses:
       Sinto muito Sr. Finder, os últimos exames apontaram que seu coração não está mais respondendo ao tratamento e já não estamos mais conseguindo conter a dilatação como antes.
       Isso quer dizer que vou morrer?
      Não sabemos exatamente quando, mas estimo que tenha mais três meses de vida, no máximo. Isso se continuar fazendo o tratamento.
     Nunca Joseph se sentiu tão desorientado quanto naquele momento. Voltou para sua casa e lá ficou trancado por eternos cinco dias, pensando, chorando, se lamentando e até sorrindo desesperadamente daquela situação. No fim das contas, não havia nada que ele pudesse fazer, ou havia? Sim, havia! Joseph percebeu que nunca esteve vivo realmente. Nunca sentiu aquela sensação de extrema felicidade por fazer um gol, por conseguir atravessar uma piscina nadando, por brincar de pega-pega com outras crianças, por correr atrás de pipa ou mesmo por proporcionar prazer a uma mulher na cama. Ele sempre lutou para sobreviver, mas nunca para viver.
       Decidiu então que faria três coisas, que sempre teve vontade, antes de morrer: Jogaria uma partida de futebol na Inglaterra, faria sexo com uma francesa e correria no deserto do Saara.
      Na semana seguinte, Joseph já estava no avião rumo à Inglaterra. Chegou por volta de sete horas da manhã em Londres e não perdeu tempo, procurou a direção do clube de futebol Aston Vila e explicou sua situação e seu desejo. O diretor do clube foi extremamente compreensivo e autorizou que ele jogasse os quinze primeiros minutos da partida contra o Sunderland, no dia seguinte, acompanhado de uma equipe médica.
      Joseph não conseguiu jogar os quinze minutos completos, mas os seis que jogou foi o suficiente para sentir o enorme prazer de estar em um ali, cercado por milhares de torcedores que o incentivavam, mesmo vendo que ele era horrível com a bola nos pés. Ele não jogou por dinheiro, nem por fama e muito menos por mulheres. Joseph jogou porque aquilo o fazia feliz.
      No dia seguinte, viajou de trem pelo canal da mancha até Calais, ao norte da França, onde se instalou num albergue.  A noite naquela cidade era repleta de atrativos para marinheiros, prostitutas circulavam em muitas esquinas e havia bordéis por toda a cidade, principalmente próximo ao porto. Joseph foi ao L’apollonidé, o bordel mais luxuoso de Calais, onde frequentavam autoridades, empresários e grandes industriais. Ele não estava preocupado com o que ia gastar, afinal, estava próximo de seu fim e não tinha herdeiros para deixar o que havia adquirido em sua vida.
     Lá no L’apollonidé, Joseph conheceu Marrie, uma mulher divinamente linda e atenciosa, com quem passou a melhor de todas as suas noites, apesar de ter passado mal e ser levado ao hospital local. Mas isso não importava, pois pela primeira vez Joseph conseguiu levar uma mulher ao orgasmo, e não há dor no mundo que lhe faça esquecer esse prazer.
     Ficou internado por três dias, e pensou até que não conseguiria realizar seu último desejo, mas enfim recebeu alta e pôde pegar o primeiro voo para o Egito, de onde alugou um carro e dirigiu até a África. Acampou numa pequena vila na região de Sahel. Consigo levou apenas uma mochila com alguns sanduíches e um cantil de água.
      Amanheceu o dia e Joseph começou a correr, em ritmo lento, mas sem parar. Ele sabia que aquela seria a última corrida de sua vida, e de certa forma também a primeira. Perdia o fôlego, parava, descansava e voltava a correr. Por vezes sentiu fortes dores que o derrubaram nas areias do deserto, mas ele esperava, se levantava e voltava a correr. Sempre em frente, rumo a um destino que não conhecia. Pensava no que já vivera até ali e tinha a certeza de que seus últimos dias tinham sido os melhores que já vivera.
      A paisagem era única, encantadora e selvagem. O azul do céu em contraste ao amarelo alaranjado da areia escaldante produzia um cenário fantástico. Nem o calor, nem o cansado, nem as dores diminuíam o prazer de estar ali, de correr como nunca havia corrido em sua vida, como uma criança.
      Parou duas ou três vezes para comer e beber à pequena sombra de uma árvore retorcida e quase sem folhas, solitária no deserto. Não economizou água nem comida, comeu o suficiente para satisfazê-lo e voltou a correr.
      A noite chegou e trouxe o vento frio junto a ela, que cortava sua carne provocando-lhe dor nos ossos. Não havia abrigo, nem agasalho.  Passou a noite sem conseguir dormir, ajeitando-se para lá e para cá, procurando uma posição que lhe permitisse ficar aquecido de alguma forma, mas em vão. Quando o dia amanheceu, Joseph sentiu uma enorme felicidade à medida que o calor invadia seu corpo. Levantou-se, comeu o último sanduíche, bebeu o que restava da água e correu, na mesma enigmática direção, parando, caindo e se levantando toda vez que seu coração ameaçava acabar com aquilo tudo.
      Passou-lhe pela cabeça que a noite de frio não fora tão ruim quando o calor começou a queimar sua pele que estava protegida apenas por uma fina roupa de algodão. A areia que entrara em seus sapatos feria seus pés à medida que corria, e o sangue já marcava a areia a cada passo dado. Joseph já não corria mais, andava apenas, vagarosamente, com fome, sede, sem forças.
     Em certo momento daquele dia, o forte calor já não era mais um incômodo, nem as bolhas que já ameaçavam emergir em seus ombros. A água do seu cantil já havia desaparecido há mais de trinta horas e a secura em sua garganta somada à imensidão do deserto que o rodeava era desesperador. Ao olhar para trás, Joseph só via o rastro de sangue que seus pés deixaram na areia e que lhe mostravam o caminho de volta, o qual ele tinha certeza que não seguiria. Lembrou então das estórias que sua avó contava quando criança, do viajante do deserto que sempre encontrava um oásis quando já estava à beira da morte.
       Não há oásis para homens como eu, minha avó?  murmurou para si mesmo, com esperança que sua avó pudesse ouvi-lo, aonde quer que ela estivesse.
     Joseph já não aguentava mais. Seu corpo tinha chegado ao limite. Então, para celebrar sua realização, ele usou de suas últimas forças e voltou a correr, e correu cada vez mais rápido, como nunca havia corrido em toda sua vida. Correu para agradecer por ter tido tempo de se realizar nesta vida.
      De repente sentiu um estalo seguido de uma dor imensurável. Caiu estatelado de bruços, arrastando seu rosto na areia. Havia chegado a hora, ele sabia. Sua visão começava a ficar embaçada, e observou que havia um pequeno lagarto ali próximo. Sussurrou então aquela criatura suas últimas palavras:
       Enfim você viveu, Joseph Finder.

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12 comentários:

  1. Sou seguidor fiel do Boteco e acompanho diariamente as publicações. Para mim é uma honra fazer essa participação como convidado. Já tinha vontade e fiquei muito feliz quando o Chamun me fez o convite (Valeu, Chamun!).

    Espero que gostem do conto e se quiserem mais é só aparecerem lá no meu blogue que tem muito mais.

    O POETA E A MADRUGADA
    opoetaeamadrugada.blogspot.com

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  2. Sou visitante do Boteco e vejo aqui preciosidades, como o conto do Girotto.
    Motivação...fica a lição implícita de que deve-se viver, apesar do limites cada pessoa não deve se limitar.
    Abraços e parabéns!
    Vall Nunnes

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  3. Temos que viver a cada minuto nossas vidas e não pensar no amanhã e sim pensar no hoje. Gostei demais do texto do Dênis e curti demais mesmo. Poxa" isso podia ser a vida real, mas foi só uma história. Mas enfim curti e gostei demais mesmo.

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    1. Obrigado Rodrigo. O futuro não nos pertence, o que somos é o que vivemos, e o que vivemos é o agora, o presente. O conto teve esse intenção de alertar sobre a importância de vivermos em plenitude cada momento, pois nem todos teremos essa oportunidade de Joseph Finder teve de realizar seus sonhos antes de morrer.

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  4. Sempre curto seus escritos Denis,
    Parabéns!!!
    Foi exatamente esse conto que li a primeira vez que visitei seu blog..
    Parabéns querido belíssima história!!!

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    1. Obrigado Cristiane, entre tantos contos foi uma coincidência você ter lido primeiro esse :)

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  5. Achei muito legal ser formada em ciências exatas e amar literatura!
    Arte é arte!
    meus amigos formados em Exatas, acham geralmente que literatura é chata e n acrescenta, só os números são importantes!
    Gostei muito do conto de Denis,parabéns ao autor!
    bjus
    http://www.elianedelacerda.com

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    1. Realmente Elyane, são pouco dessa minha área de exatas que apreciam a literatura. Sou um apaixonado pelo números, mas também amo as letras.
      Ah, e obrigado. :)

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  6. Que coragem dele.
    Depois de desenganado ele acreditou que poderia viver e viveu.
    Belo conto.

    Palavras da vida

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  7. Extraordinário , o desespero leva a fazer coisas inesperadas, fico a imaginar como seria a vida de uma criança assim, sem as coisas de crianças.
    Como seria saber que você tem apenas X de vida.
    Parabéns pelo post.

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